A última campanha de vacinação me fez lembrar o tempo de criança.
Tínhamos de quatro a sete anos. Num um dia de chuva, estávamos em nossas peripécias de moleques na casa do sítio, em Alecrim.
Minha mãe havia extraído um dente, por isso, permanecia retraída, a um canto da casa. Meu pai, debruçado à janela, olhava pacientemente a chuva caindo enquanto os fios de fumaça de tons azulados subiam do cigarro dele. Meus irmãos mais velhos jogavam sinuca com bolas de gude numa mesinha improvisada. Ao lado de meu pai, minha avó, sentada, falava sobre as cheias do Rio dos Pitus, eram as maiores dos últimos anos.
A vida seguia normal naquela manhã chuvosa. A casa tornara-se pequena para nossas traquinagens. De vez em quando, mamãe, num ato de reprovação, balançava a cabeça, sinalizando que a paciência estava se esgotando.
Depois de horas, a chuva fez uma pausa. Alguns raios de sol, embora tímidos, apareceram entre nuvens carregadas. Saímos ao terreiro. As brincadeiras, agora, giravam em torno de uma poça d’água. Quem conseguisse transpô-la com um único salto, teria direito a aplicar cinco cascudos nos perdedores que, com os traseiros molhados, ainda se arriscavam a levar umas chineladas de mamãe.
Porém, a nossa competição foi interrompida. Chegou um homem vestido numa roupa estranha, trazendo à cabeça um chapéu tipo soldado de guerra. Parou a nossa frente e perguntou por nossos pais. “– Estão lá dentro, respondeu alguém”.
Antes mesmo que o visitante fosse anunciado, minha avó esticou o pescoço através da porta e gritou:
- Cruz, credo! É o homem da Malaia!
Mas, o que queria aquele homem estranho com um nome mais esquisito ainda?
Nosso pai, vendo o pânico em nossos olhos, tratou de nos tranquilizar.
-Ah, é o homem que tá vacinando o povo!
O homem riu e disse que não tivesse medo. A vacina seria aplicada em todas as pessoas, inclusive em nós, não nos preocupássemos porque não ia doer quase nada. Meu pai foi o primeiro a tomar umas agulhadas no braço. Depois, foi a vez de meus irmãos maiores e, por último, nós, os pirralhos que ainda há pouco pulávamos uma poça d’água.
Finalmente chegou a vez de minha avó, mas ela foi logo dizendo que não queria ser vacinada, pois no tempo de criança, os pais dela falavam que chegaria o dia em que os velhos seriam transformados em jabá. Quem sabe ali não estaria um enviado da Besta pra envenenar e transformá-la em carne seca?
Foi a minha primeira vacina e, contrariando as ideias de minha avó, não fui raptado pela Besta nem transformado em jabá, mas ainda tenho uma pequena marca no braço esquerdo como lembrança.