A sirene do Ginásio São José anunciou o fim de mais uma noite de aula. Como de hábito, o jovem desceu a Lourival Batista acompanhado de uma multidão. Naquela noite, encontrou uma pequena lata no portão da escola e saiu chutando. (Era costume dele chutar tudo que encontrasse pela frente.) Juntaram-se a ele outros colegas que disputavam quem seria capaz de chutar a bola improvisada mais distante. Um pouco mais à frente, uma senhora sentada à calçada reclamou que aquilo era perigoso, poderia acertar uma pessoa e causar um grave ferimento. Os jovens ignoraram a reclamação e foram assim até à Praça 25 de Novembro. Ali, Gabiru - apelido dado pelos colegas - separou-se dos demais e entrou à esquerda, tomou direção de casa. Na praça do fundo da matriz, a Padre Manoel de Oliveira, alguns moleques ainda jogavam bola. O rapazote ficou por alguns minutos observando o “racha” dos outros. Queria participar, mas não o convidaram. Estavam jogando apostado. Subiu ao coreto que existia ali e sentou-se. Agora, tinha uma visão privilegiada não só do jogo, mas de todo o local. A partida não terminava e ele resolveu ir descendo, pois ainda tinha outro compromisso.
Em casa, encontrou a porta cerrada como sempre. Entrou, foi à cozinha, tomou uns goles d’água, mastigou um pedaço de beiju de coco que ficou guardado no armário e preparou-se para sair outra vez. A mãe, que ainda estava acordada, perguntou aonde ia o filho àquela hora. Não se demorasse na rua; já era tarde. O dia seguinte seria “de branco”, não esquecesse disso. Prometeu voltar logo e puxou a porta atrás dele.
No fundo da matriz, o jogo de aposta já havia sido encerrado, porém, os moleques discutiam. Um deles, maldosamente, escondera as havaianas de um dos colegas. O dono e os companheiros procuravam-nas embaixo dos bancos e até nas luminárias em cima dos poucos postes de iluminação, no entanto, não as encontravam. Eram só brincadeiras entre amigos, não compensava ficar ali de assistente.
Na Praça Tércio Veras, o único ponto em que havia movimento era no bar de Seu Manoel Eleutério. Aquele que ficava na esquina da Rua Alcides Borges. Estabelecimento estreito e alongado, com umas três mesas de sinuca nos fundos que eram disputadas pelos apreciadores desse esporte. Um deles era o Gabiru que, apesar de bem jovem, era respeitado em toda a cidade. Aqui, já não encontrava mais quem quisesse jogar com ele apostado. Ganhava todas! Somente, às segundas-feiras, ocasião em que a cidade recebia gente dos povoados e de outros municípios, ele forrava os bolsos à custa dos inocentes e desavisados visitantes.
Naquela noite, como não encontrasse com quem apostar uma partida, resolveu apenas brincar; era preciso o treino para não perder a pontaria. Afinal, a segunda-feira vinha aí.
Assim foi. Da praça e das ruas circunvizinhas, ouviam-se apenas os “teco-tecos” dos tacos nas bolas de sinuca advindos dos fundos do bar. Pra resumir a história, Gabiru só saiu quando o proprietário, já bocejando, baixou as portas e deu sinal de que era hora de dormir.
Saiu. Atravessou a praça sozinho, os passos ecoavam no calçamento. Pros lados do Saco do Fundo, um cachorro latia desesperadamente. Em frente à igreja, fez o sinal da cruz e um arrepio correu-lhe lombo acima. Sentiu um remorso momentâneo, mas continuou em passos acelerados. A morada era um pouco abaixo; mais uns minutos estaria em casa e esqueceria tudo na cama.
Ao fundo da igreja, onde os moleques discutiam sobre as havaianas, o silêncio era total. As casas, todas fechadas. Algumas lâmpadas dispersas mal iluminavam as ruas de piçarra. É, no início da década de 70, poucos logradouros de Malhador tinham pavimentação, salvo a praça da feira, a 25 de Novembro e pequenos trechos de ruas adjacentes. O que se destacava na Praça Padre Manoel de Oliveira era um coreto fincado ao fundo dela. Construção que talvez nunca fora utilizado para os fins de que foi construído. Por isso, usavam-no para coisas que só a imaginação pode justificar.
Pois, bem. Quando Gabiru emparelhou à Rua José Joaquim Cardoso, levantou a vista em direção ao início da São Pedro, a que ele morava, viu na esquina por trás de um muro um vulto preto, sem forma definida, sobressaindo apenas a cabeça sobre uma longa capa que ia do pescoço aos pés do estranho indivíduo. Essa visão fê-lo parar e recuar instintivamente. ‘É um “maçoni”. Foi a primeira idéia que lhe veio à cabeça. Aproveitando-se da pouca iluminação, encostou-se a um poste e ficou esperando que a coisa escura tomasse um rumo, porém, parecia estar em penitência porque não dava um passo nem para frente nem para trás.
O nosso personagem estava em situação difícil. Voltar ao bar e pedir ajuda não podia; estava fechado. Prosseguir, menos ainda; a coisa estranha havia-lhe bloqueado o caminho. Traçar um plano de escape era urgente; antes de ser sangrado, ter sua barriga cortada por unhas de aço e as tripas serem jogadas para fora. Tal pensamento fez o jovem tremer a ponto de bater uma perna contra outra.
De mansinho como um gato, para que a coisa não tomasse conhecimento dele, voltou de costas, pois os olhos não desgrudavam do vulto e entrou na Rua José Joaquim Cardoso. A passos largos, chegou a José de Sá Barreto. A intenção dele era alcançar a residência pela Rua Lagarto. Desceu ofegante. Essa rua, estreita e sem iluminação, era o único acesso mais próximo à sua residência.
De uma extremidade a outra, era um só breu. Teria que andar devagar para que seus passos não fizessem nenhum barulho e um fato estranho lhe intrigava os pensamentos: nessas horas uma pequena distância se transforma numa peregrinação de léguas e léguas de comprimento. Ia assim, só ouvindo o bater do coração e a respiração acelerada. A certa altura, novo susto: um gato miou rasgadamente bem próximo a ele. Dominou o medo e prosseguiu, mas o pior das tragédias estava ainda por vir.
Naquela época, era comum, mesmo na cidade, os moradores possuírem vira-latas que vigiavam as portas. Quem andasse no escuro tinha a mesma segurança de quem anda em um campo minado. A essa realidade, Gabiru não podia fugir.
Com passos longos e fortes, queria vencer o último obstáculo e entrar em casa, mas no meio da rua havia uma armadilha. Tudo aconteceu em uma fração de segundo. Dentes enormes de um bicho desconhecido agarraram-se às pernas e causaram-lhes muitos ferimentos. A reação do rapaz foi a mesma que qualquer mortal teria tido. Gritou. Pediu socorros e desembestou para casa. À porta, encontrou a mãe e os irmãos que já vinham ao encontro dele. Em seguida, chegaram os vizinhos pelo mesmo motivo. Queriam saber a razão de tantos gritos e pedidos de ajuda.
Armados de cacetes, espingardas, foices e facões entraram na Rua Lagarto onde não viram outra coisa senão o velho Rabicó, cachorro de um dos moradores dali, deitado e com uma pata quebrada. Frustrados pelo primeiro plano de encontrar o suposto agressor, resolveram tomar o caminho mais óbvio que era o da praça. Todos eles gritando em uma só voz: ‘Peguem o “maçoni!”’. ‘Peguem o “maçoni!”’. Em grande algazarra, subiram a Rua São Pedro. Alguém que ia à frente virou para os companheiros e falou: ‘Cuidado com o bicho porque ele é forte. Quem atirar, mire bem no umbigo dele.’ Segundo a crença, o único ponto vulnerável.
À procissão de justiceiros, juntaram-se outros moradores que também foram acordados com as palavras de ordem: ‘Peguem o “maçoni!”’. ’Peguem o maçoni!”’. Uns mais afoitos iam se revezando na dianteira até que houve uma pausa. O que seria? O vulto continuava na mesma posição de penitência. Vez ou outra fazia um pequeno movimento. ‘Cuidado! Vamos atirar daqui antes que ele fuja!’ Foi a ordem de alguém que exigia a máxima cautela. Aceita a sugestão de meterem fogo à uma certa distância, posicionaram-se os melhores atiradores e desfecharam uma saraivada de tiros em direção ao que chamavam bicho.
Os disparos só fizeram acordar o resto do pessoal que continuava dormindo enquanto a coisa continuava na mesma indiferença de antes. Foi chegando gente e outros tiros foram dados sem que se obtivesse o menor sucesso. Se o bicho não caía, era porque estavam errando o ponto fraco dele. ‘Só havia uma solução’ – disse alguém: ‘ir engatinhando por trás do muro e quando estivesse frente a frente, fazer o disparo certeiro. A sugestão foi bem acolhida, mas não houve um só voluntário que se dispusesse pô-la em prática.
A guerra entre o bem e o mal só parou ao amanhecer quando exaustos e abatidos se deram conta de que a coisa a quem eles denominaram o “maçoni” não passava de um longo vestido preto dependurado em um varal. Certamente, estava molhado ao pôr do sol do dia anterior ou, deixado ali por um simples esquecimento da dona.
Constatado o triste fim da guerra, só restaram aos combatentes duas alternativas: pagar a mulher pelos danos causados à vestimenta dela e bater em retirada.
Ao Gabiru, sobraram também duas decisões imediatas: curar os ferimentos causados pelo cão que ele quebrou a pata e tomar injeção anti-rábica.